Medida Provisória

4/15/2022 01:55:00 AM |

Há filmes que mesmo você não se enquadrando na ideia proposta pela trama fazem você sentir tantas emoções que acabamos não chocados pela essência forte em si, mas sim comovidos com tudo o que tentaram trabalhar na tela, e que se sobressai ao tema em si, fazendo valer a conferida pela dinâmica, pela ideia, e por saberem fazer com que o filme tivesse um conteúdo amplo, e um bom exemplar disso é o filme "Medida Provisória" que trabalha uma ótica tão forte em cima da discussão racial que acabamos sentindo tudo mesmo não fazendo parte do grupo de impacto do longa, então fico imaginando para quem for realmente negro (ou melanina acentuada como o filme coloca) toda a simbologia e imponência que a trama irá entregar. Ou seja, é um filme com um desenrolar bem marcado, mostrando tanto que a direção acertou na dosagem dramática, quanto dos atores por se doarem ao estilo, não jogando apenas com dinâmicas simples, mas sim com uma vivência forte e crítica com relação à tudo o que é mostrado, sendo daqueles que talvez até podemos esquecer os detalhes, mas que quando alguém citar algo do estilo teremos ele como uma referência.

O longa nos conta que em um futuro distópico, o governo brasileiro decreta uma medida provisória, em uma iniciativa de reparação pelo passado escravocrata, provocando uma reação no Congresso Nacional. O Congresso então aprova uma medida que obriga os cidadãos negros a migrarem para a África na intenção de retornar a suas origens. Sua aprovação afeta diretamente a vida do casal formado pela médica Capitú e pelo advogado Antonio, bem como a de seu primo, o jornalista André (Seu Jorge), que mora com eles no mesmo apartamento. Nesse apartamento, os personagens debatem questões sociais e raciais, além de compartilharem anseios que envolvem a mudança de país. Vendo-se no centro do terror e separados por força das circunstâncias, o casal não sabe se conseguirá se reencontrar.

Quem lê meus textos sabe que reclamo de praticamente 90% dos diretores estreantes, mas felizmente Lázaro Ramos se encaixa nos outros 10%, pois ele trabalhou bem as dinâmicas, usou com um primor o texto de uma peça funcionando como cinema sem qualquer ato preso em atos marcados de palco, abrindo tudo para que cada momento fosse determinante e envolvente, e principalmente se posicionou para que sua trama passasse a mensagem de uma maneira emocional demais para o público de uma forma que entrássemos na ideia completa e tudo marcasse presença, ao ponto que alguns vão falar ser uma crítica ao governo atual, outros vão usar apenas a base de racismo, mas o contexto social amplo acaba falando até mais com o público do que tudo, e mais do que apenas os protagonistas chamaram a responsabilidade para si, as vilãs foram escolhidas na medida certa para fazer o público ficar com raiva delas. Ou seja, o resultado da direção de Lázaro só não é melhor por deixar um final amplo de discussões ao invés de fechar seu filme como realmente algo marcado com uma ideia única, mas seu cinema será lembrado talvez pela cena final bem direta e fluída.

Sobre as atuações, o destaque é claro para Alfred Enoch com seu Antônio, que praticamente só o vimos durante toda a franquia Harry Potter como o garotinho Dean, e agora que já está bem crescido entregou trejeitos fortes, dinâmicas expressivas bem intensas, e nos atos que o filme dependeu dele se jogou completamente para cena fazendo toda a representatividade ter voz, o que acaba chamando atenção e agrada demais em tudo. Taís Araújo também deu muita voz à sua Capitú, levando um ar mais calmo inicialmente, e depois se desesperando na correria, para dentro do afrobunker (ou quilombo moderno) se doar e explodir de vez, ou seja, deu vida e marcou demais em seus atos. Seu Jorge entregou algo mais despojado com seu jornalista André, brincando bastante em cena, mas também sendo muito representativo e impositivo quando precisou, ao ponto que o ar solto seu se joga na loucura nos atos finais dele, o que chama demais a bola para si, e chuta bem como sempre. Agora as duas vilãs da trama foram escolhidas a dedo entre as melhores vilãs do Brasil, com Adriana Esteves botando banca e apertando todos os protagonistas lhe privando direitos na casa para que saíssem, mostrando suas garras logo no começo como algo bonitinho, mas forte e impositiva na medida dos atos finais com sua Isabel, e claro Renata Sorrah com sua Izildinha representando aquelas vizinhas que não aceitam que uma pessoa que julga menor tivesse algo a mais que ela, sendo perfeita nos olhares e desenvolvimentos. Ainda tivemos vários outros bons papeis dentro do afrobunker, com destaques para Aldri Anunciação com seu Ivan, Emicida como Berto e Hilton Cobra com seu Gaspar e Flávio Bauraqui como Kabenguele, mas o ato mais forte ficou a cargo do momento imponente de Pablo Sanábio com seu Santiago sendo ameaçado da mesma forma lá dentro. 

Visualmente o longa tem boas cenas nas ruas com as capturas e conflitos, tem a cena inicial bem representativa de tirada de direito da velhinha no banco, o julgamento vazio com ninguém dando bola para o advogado, os atos no bar bem conflituoso e cheio de contrapontos, as danças, todo o simbolismo de vida no apartamento com a esposa e depois no desespero, as cenas fortíssimas na floresta, no afrobunker cheio de detalhes da festa negra originalmente negra proibida, a representação dos elementos da capoeira em vários lugares, e claro a escola sendo usada como campo de exclusão, ou seja, todo o ambiente em si tem vários vértices e representações simbólicas, que chamam muita atenção do começo ao fim.

Enfim, é daqueles filmes memoráveis que vão entrar no top melhores longas nacionais, que só não irei dar a nota máxima para ele por acreditar que a conclusão poderia ser mais lapidada e mostrar algum tipo de acontecimento, pois o diretor optou por deixar aberto ao público para decidir se deu certo a rebelião ou não, se a voz negra foi calada ou não, e assim liberar para a reflexão em si, e facilmente poderiam ter usado isso de uma outra maneira mais direcionada que me agradaria mais, mas ainda assim faz valer bem o resultado do conjunto, e sendo assim recomendo ele demais para todos. E é isso pessoal, eu fico por aqui hoje, mas volto em breve com mais textos, então abraços e até logo mais.


0 comentários:

Postar um comentário

Obrigado por comentar em meu site... desde já agradeço por ler minhas críticas...