Netflix - American Son

11/06/2019 01:05:00 AM |

Quer ver uma peça de primeira linha transformada em filme, mas ainda mantendo a essência do teatro? Coloque agora na Netflix e confira "American Son", que de uma maneira incrível passa todo o sentimento de racismo interior, de medo de tudo o que já aconteceu no passado e que ainda é um pesadelo na mente e na vida de pessoas negras, de aflição por não saber o que pode ter acontecido com o filho, e muito mais que brilhantemente interpretado por um elenco muito bem colocado (que são inclusive os mesmos 4 atores que vivenciaram a peça no teatro!), dirigido pelo mesmo diretor, e que apenas arrumaram dois ambientes simples para passar através de muitos diálogos e interpretações fortes um texto impactante, cheio de reviravoltas e nuances imponentes que se aliviam rapidamente, para logo em seguida já voltar a explodir, até chegarmos aos três pontos de impacto, aonde o filme choca e que na peça certamente são os pontos aonde o queixo da plateia desabava. Ou seja, um filme ímpar que fará você se sentir vendo uma peça incrível, e que vale muito a conferida.

O longa nos conta que são três da manhã de uma noite de chuva no sul da Flórida, e uma mãe caminha ansiosa em uma sala de espera da delegacia enquanto tenta entender o que pode ter acontecido com seu filho desaparecido. Ali, acaba passando por uma série de situações: perguntas irritantes e sem resposta, que revelam um sistema cheio de preconceitos subjacentes, diferentes perspectivas, e uma dinâmica conjugal tensa com o ex-marido (Steven Pasquale).

O longa que é baseado na peça de sucesso da Broadway, também dirigida por Kenny Leon, consegue nos entregar uma sensível dinâmica envolvendo racismo e muitas tensões familiares, de forma a praticamente embarcarmos completamente nas falas dos protagonistas mesmo que não façamos parte do grupo em que a trama é inserida, pois sim é um filme aonde o público negro se sentirá incomodado, ouvirá seus medos serem ditos em alto e bom som, e principalmente acabará se emocionando com cada momento, mas longe de ser um filme só para esse grupo, o longa consegue fazer com que sentíssemos isso também através de indignação por precisarem sentir isso, ou seja, um filme duro, marcante e que nos faz sentir diversas coisas em nossa mente, o que faz dele a perfeição em forma visual. Diria até mais, que o filme passa tanta verdade cênica que não podemos considerar ele uma obra de ficção seja de cinema ou de teatro, mas quase um documentário vivido na pele de uma família real dentro de uma delegacia, que de forma imponente ouve muitas coisas que não deveria ali, e essa transformação é completamente mérito do diretor que conseguiu entregar isso junto dos protagonistas.

E claro falando dos protagonistas, afinal volto a frisar que estamos vendo uma peça formatada para a TV, então o que vai chamar atenção são as atuações, e aqui vemos Kerry Washington incrivelmente perfeita, com dinâmicas nos olhares, com trejeitos duros e emocionados ao mesmo tempo, que não tem como não se conectar com sua Kendra, não tem como não se revoltar como ela fica com cada momento, e dessa forma a atriz mereceu todas as palmas possíveis que ouviu no teatro, e aqui as que não verá, mas espero que sinta a cada visualização de cada ato seu, pois a artista simplesmente destruiu em cena. Da mesma forma Steven Pasqualse soube praticamente brincar no cenário com seu Scott, andando por todo o ambiente, entregando olhares diretos ao ponto, e principalmente sabendo usar muito a ironia ao seu favor, de modo que muitas vezes ficamos bravos com seus atos, e ele sabe que está fazendo isso de uma maneira perfeita, pois vemos em seus trejeitos a força de puxar isso para ele, e faz brilhantemente. Jeremy Jordan faz o tradicional policial novato que deveria ficar calado para não falar as besteiras que saem da boca antes de pensar, e ele faz isso muito bem, com olhares jogados, com trejeitos juvenis, e que dessa forma acaba agradando mesmo que erroneamente com seu Paul Larkin, e certamente muitos outros atores acertariam esse tino dele, mas ele fez bem ao menos. Eugene Lee aparece somente nos últimos atos com seu John Stokes, mas com a experiência que tem faz brilhantemente duas grandiosas cenas diretas ao ponto e uma de fechamento que praticamente só lê, e sua imposição cênica agrada bastante, mas como é pouco usado, ficamos com um gostinho de que ele poderia ter feito algo a mais.

No conceito cênico temos praticamente só uma sala com algumas cadeiras e sofás, uma caixa de rosquinhas, umas caixas em cima de uma bancada, dois bebedouros que são ponto forte de discussão temática, e claro figurinos bem trabalhados para mostrar os diversos contrapontos, além de uma tremenda tempestade caindo lá fora que vemos pelas janelas inteiras de vidro, que serve poeticamente para mostrar a tensão cênica do ambiente, ou seja, a equipe de arte praticamente não gastou nada, nem tempo para montar o ambiente, praticamente transpondo a peça para um estúdio, e filmaram algumas cenas espalhadas para mostrar o encontro dos protagonistas antes de casar, algumas cenas da protagonista demonstrando sua insônia noturna, e claro o incidente mostrado apenas como uma referência cênica fora da delegacia, ou seja, tudo bem simples, mas muito bem feito. A luz cênica foi mantida do começo ao fim, num tom de média densidade quase puxando para algo mais escuro, para claro manter a tensão do ambiente, e dessa forma nem precisaram tanto brincar com sombras, pois o filme se complementa com os poucos movimentos de câmera e dos personagens, que mesmo agitados não bagunçaram tanto os enquadramentos.

Enfim, é um filme incrível, que vale demais a conferida, e que certamente a Netflix foi tremendamente esperta em comprar os direitos da montagem para a TV (e acho que é um tremendo nicho para investirem: o de comprar peças marcantes da Broadway para virar filmes de poucos cenários e de muito envolvimento!). Ou seja, recomendo muito o filme, que mesmo tendo alguns atos que poderiam ser melhores, como no caso dos dois policiais, e/ou amplificar mais as cenas externas para dar um peso de filme a mais na trama (o que não atrapalha em nada!), consegue soar perfeito e incrivelmente atual para todos, pois poderiam ser negros, homossexuais, ou qualquer tipo que sofre muita discriminação hoje. Bem é isso, fico por aqui hoje, mas volto em breve com mais textos, então abraços e até logo mais.

PS: fiquei muito em cima de dar uma nota 10, mas como pensei em poder ser um pouco mais filme e menos peça, resolvi remover um coelhinho.

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