Nise - O Coração da Loucura

5/08/2016 01:30:00 AM |

Já ouvi algumas vezes a expressão que dentro de todo artista existe um louco presente e dentro de todo louco existe a alma de artista, e não posso afirmar que foi usando essa ideologia que Nise da Silveira trabalhou nos anos 40 para mudar o estilo de terapia ocupacional que deu muito resultado com pacientes de um instituto de psiquiatria, mas que certamente a expressão funcionou bem para os artistas que interpretaram os pacientes do longa "Nise - O Coração da Loucura" disso eu não tenho dúvida nenhuma. O filme além de tocante, conseguiu trabalhar bem com a história de forma que o filme nos envolvesse sem precisar apelar, mostrando que na maioria das vezes o uso da força deve ser a última coisa a ser pensada para curar alguém, pois ao tratar seres humanos (mesmo que em condições totalmente debilitadas) como seres humanos também, o resultado pode ir muito além do que se pode esperar, e aqui o uso das artes foi algo extremamente bem interpretado e lindo de se ver na tela do cinema.

O longa nos mostra que após passar 15 meses presa por causa de seu envolvimento com o marxismo, e mais cinco anos de reclusão, a doutora Nise da Silveira, volta ao trabalho no Hospital Psiquiátrico Pedro II, no subúrbio do Rio de Janeiro e se recusa a empregar o eletrochoque e a lobotomia no tratamento dos esquizofrênicos. Isolada pelos médicos, resta a ela assumir o abandonado Setor de Terapia Ocupacional, onde dá início a uma revolução regida por amor, arte e loucura, implementando um novo tipo de terapia, focada em pintura e no convívio com animais domésticos.

Ao mesmo tempo que o filme pode ser assistido como um longa doce e poético, ele também pode atingir o patamar de duro e impactante com toda a realidade mostrada na tela pelo diretor Roberto Berliner, que é um grande especialista em documentários, e aqui em seu segundo longa de ficção acabou saindo bem melhor do que no longa de estreia, afinal com algo mais biográfico, ele pode utilizar seus dons documentais para retratar o texto feito por um grupo enorme de roteiristas. A grande sacada do diretor foi conduzir a história com a dualidade da loucura, mostrando que até mesmo a loucura da doutora em tentar uma coisa completamente louca junto dos pacientes, evitando os tradicionais métodos de lobotomia e eletrochoque, e partindo para algo mais belo e incluindo as pessoas como elas devem ser num cotidiano comum. Claro que para mostrar esse ótimo trabalho da doutora, ele optou por uma câmera mais agitada, na mão, com poucas cenas estáticas e trabalhando o público até mesmo como um outro paciente/cliente da doutora, inserindo um ponto de vista quase que in loco, e isso em exagero costuma cansar o espectador, porém felizmente isso acaba não acontecendo, pois os movimentos são bem sutis e trabalhados de uma forma mais crua impossível, o que vai fazer muita gente chorar na penúltima cena do filme ao mexer com os animais de uma maneira tão incrível, realmente muitos vão sentir o mesmo que os pacientes do hospital (raiva, desespero, tristeza e dor). Ou seja, um trabalho bem feito e que acertou em minúcias para colocar o público dentro quase da tela.

Sobre as atuações tenho de falar logo de cara duas coisas Glória Pires vai cair bem em qualquer personagem que seja colocada, e mais do que isso tenho de parabenizar todos os atores que fizeram os pacientes, mas o texto ficaria imenso então vou preferir dizer no geral que foi um trabalho incrível, pois inicialmente fiquei pensando nossa, será que botaram a Glória mesmo dentro de um hospício para trabalhar com algumas pessoas, mas daí reconheci Fabrício Boliveira, e vi que alguns passaram a atuar mais do que apenas fazer simbologias, e assim vi que todos eram atores, e por sinal ótimos, pois se doaram de corpo e alma para os personagens fazendo movimentos por vezes difíceis e expressões bem condizentes com cada momento num trabalho visceral e artístico que comumente vemos em diversos cursos de teatro, e que alguns alunos até costumam dizer que é apenas expressividade corporal e nunca será usada à fundo, mas aqui quem for assistir, verá o quanto foi altamente necessário, pois voltando ao começo do meu texto, a loucura impregnou na alma dos artistas do longa, então parabéns à todos: Simone Mazzer, Fabricio Boliveira, Julio Adrião, Claudio Jaborandy, Roney Villela, Flávio Bauraqui, Bernardo Marinho, entre outros. Dito isso, não posso afirmar que Nise da Silveira foi uma mulher com tanta classe e elegância como a mulher que Glória Pires nos entregou, pois ao final com a bem velhinha Nise dando sua entrevista, só vimos que ela era uma pessoa bem dedicada e disposta a enfrentar tudo e todos, mas nada além disso, e a atriz soube demonstrar bem cada imponência de cada ato de maneira incrível e característica que tanto conhecemos bem e sem erros agrada até mais do que deveria.

Outra coisa que posso dizer estar incrível no filme é o trabalho da equipe de arte, pois ao criar de forma dura, e até podemos dizer feia visualmente, o hospital psiquiátrico, a equipe acabou mostrando a dura realidade que são esses lugares, aonde diversas pessoas acabam sendo jogadas e muitas vezes nem recebem visitas de ninguém, o que acaba só agravando o seu quadro psicológico. Então ao retratar o hospital como algo quase abandonado, sujo, cheio de coisas mal acabadas, com diversos elementos cênicos para representar tudo isso, o acerto foi eminente, e depois ao trabalhar a parte artística com a pintura e escultura junto aos pacientes, o filme entrou numa vibe tão linda e bela, que o mundo quase sai do chão com todos os elementos que colocaram em cena. Junto da grande arte, a equipe de fotografia teve um trabalho até que de certa forma ingrato para iluminar tudo sem soar falso, pois como disse, o diretor optou por muita câmera em movimento e isso dentro de locações pode estragar um filme completamente, o que felizmente não acabou ocorrendo aqui, e usando de muitos tons marrons com filtros e técnicas, o longa ganhou um ar mais sujo e poetizado.

Enfim, um excelente filme que envolve e agrada na medida certa, de tal maneira que até se fosse mais longo, colocando mais elementos e trabalhando mais a vida de cada paciente, pois só ficamos sabendo como dois foram parar no hospital, e certamente a história de cada um é incrível de ser contada, e provavelmente foi filmada para depois eliminar na edição final, então quem sabe mais para frente não decidam fazer uma série ou algo do tipo, pois seria algo bem válido. E sendo assim, mais do que recomendo a trama, mesmo que você não seja muito adepto ao estilo contextual que alguns longas nacionais acabam incorporando, e isso é o que posso dizer que é o único defeito da trama, pois mesmo sendo algo que agradaria ver como uma novela ou série, o filme não se prende tanto a isso. Bem é isso pessoal, fico por aqui hoje, mas volto na segunda com a última estreia que veio para o interior, então abraços e até breve.

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